segunda-feira, 16 de julho de 2012

Biografia George Whitefield – J. C. Ryle Parte 2 Capítulo 1 Condição Moral e Religiosa da Inglaterra no Início do Século



O assunto que desejo tratar neste volume é parcialmente histórico e parcialmente biográfico. Se algum leitor espera, devido ao título, uma estória fictícia ou alguma coisa parcialmente extraída da minha imaginação, eu temo que ficará desapontado. Tal tipo de escrito não é de minha alçada, e eu não teria tempo disponível para isto se o fosse. Fatos, puros fatos, e as cruas realidades da vida absorvem todo o tempo que eu posso dispor para o serviço literário.
Eu acredito, entretanto, que para a maioria dos leitores, o assunto que escolhi não necessita de apologia. A pessoa que não sente interesse na história e biografias de seu país é certamente um pobre patriota e um péssimo filósofo.
‘Patriota', ele não pode ser chamado. O verdadeiro patriotismo fará com que um inglês se interesse por tudo o que concerne à Inglaterra. Um verdadeiro patriota gostará de saber alguma coisa acerca de cada um que tenha deixado sua marca no caráter inglês, do Venerável Bede a Hugh Stowell, de Alfredo, o Grande, a Pounds, o originador das Escolas Ragged.
‘Filósofo' certamente ele não é. O que é filosofia senão a história ensinada pelos exemplos? Conhecer os degraus através dos quais a Inglaterra alcançou a sua presente condição, é essencial a um entendimento correto tanto de nossos privilégios, como de nossos perigos nacionais. Conhecer os homens que Deus levantou para fazer o Seu trabalho em dias passados, nos guiará ao procurarmos por padrões em nossos próprios dias e nos dias por vir.
Eu me aventuro a pensar que não há um período da história da Inglaterra que seja tão instrutivo para um cristão como os meados do século passado. Este é o período do qual, ainda hoje, sentimos sua influência. Este é o período com o qual os nossos avós e bisavós estiveram imediatamente associados. Este não é um período sem importância, do qual não possamos extrair as mais úteis lições para os nossos próprios dias.
Deixe-me iniciar, tentando descrever a condição real da Inglaterra há cem anos atrás. Uns poucos e simples fatos bastarão para tornar isto claro.
O leitor deve lembrar que eu não vou falar de nossa condição política . Eu poderia facilmente lhe dizer que, nos dias de Sir Robert Walpole, o Duque de Newcastle, e do Ancião Pitt, a posição da Inglaterra era bastante diferente da que ocupa agora. Grandes homens de estado e oradores havia entre nós, não há dúvida. Mas nossa posição entre as nações da terra era comparativamente pobre, fraca e humilde. A nossa voz entre as nações tinha muito menos peso do que tem obtido desde então. O estabelecimento de nosso Império Indiano mal havia iniciado. Nossas possessões australianas eram uma parte do mundo apenas recentemente descoberto, mas ainda não colonizado. Aqui, havia um forte partido no país que ainda ansiava pela restauração dos Stuarts. Em 1745, o Pretendente (ao trono) e um exército da Highland (terras montanhosas da Escócia) marcharam daquele país para invadir a Inglaterra e chegaram até Derby. Corrupção, desonestidade e desgoverno em altos postos eram a regra e a pureza, exceção. Incapacidade civil e religiosa ainda abundavam. Os Atos Corporativos não haviam ainda sido revogados. Ser um não-conformista era considerado apenas um pouco melhor do que um sedicioso ou rebelde. Municípios corruptos prosperavam. O suborno em todas as classes era aberto, descarado e abundante. Tal era a Inglaterra politicamente há cem anos atrás.
O leitor deverá lembrar ainda, que eu não vou falar de nossa condição do ponto de vista econômico e financeiro. A nossa vasta indústria de algodão, seda e linho tinha apenas começado a existir. Os nossos imensos tesouros minerais de carvão e ferro estavam quase que intocados. Nós não possuíamos barcos a vapor, locomotivas, estradas-de-ferro, gás, telégrafo elétrico, agências financeiras, agricultura científica, estradas pavimentadas, comércio livre, arranjos sanitários, nem polícia digna do nome. Deixe qualquer inglês imaginar, se é que ele pode, o seu país sem qualquer das coisas que acabei de mencionar, e ele terá apenas uma pálida idéia da condição econômica e financeira da Inglaterra há cem anos atrás.
Mas eu deixo estas coisas aos economistas, políticos e historiadores deste mundo. Embora interessantes, não há dúvida, elas não fazem parte do assunto ao qual eu desejo me deter. Eu desejo tratar deste assunto como um ministro do Evangelho de Cristo. É à condição moral e religiosa da Inglaterra há cem anos atrás que eu desejo confinar minha atenção. Aqui está o ponto para o qual eu desejo dirigir os olhos do leitor.
O estado deste país do ponto de vista moral e religioso em meados do século passado era tão dolorosamente insatisfatório, que é difícil transmitir uma idéia adequada da situação. O povo inglês do tempo presente, que nunca foi levado a inquirir acerca deste assunto, não pode ter uma idéia da escuridão que prevalecia. Do ano de 1700 até a época da Revolução Francesa, a Inglaterra parecia estéril de tudo o que é realmente bom. Como tal estado de coisas pode ter surgido em uma terra de Bíblias livres e de um Protestantismo professo, quase que ultrapassa a compreensão. O Cristianismo parecia jazer como morto, tanto assim que você poderia ter dito: ‘ele está morto'. Moralidade, apesar de muito exaltada nos púlpitos, era completamente pisoteada nas ruas. Havia escuridão nas altas camadas, assim como nas baixas, escuridão na Corte e no campo, no Parlamento e no bar; escuridão no interior e escuridão na cidade; escuridão entre os ricos e escuridão entre os pobres; uma grossa, densa escuridão moral e religiosa; uma escuridão que podia ser sentida.
É o caso de alguém perguntar: ‘o que as igrejas faziam há cem anos atrás?' A resposta pode ser dada rapidamente. A Igreja da Inglaterra existia naqueles dias com seus artigos admiráveis, sua tradicional liturgia, seu sistema paroquial, seus cultos dominicais e seus dez mil clérigos. O grupo não-conformista existia, com suas liberdades duramente adquiridas e seus púlpitos livres. Mas, infelizmente, uma explicação deve ser dada sobre ambos os grupos. Eles existiam, mas é difícil dizer se viviam. Eles não faziam nada; estavam completamente adormecidos. A maldição do Ato da Uniformidade parecia repousar sobre a Igreja da Inglaterra. A doença do comodismo e a ausência de perseguição pareciam pairar sobre os não-conformistas. Teologia natural, sem uma única doutrina distintiva cristã, moralidade fria ou ortodoxia estéril, formavam o corpo principal do ensino tanto nas igrejas como nas capelas. Os sermões, em toda parte, eram pouco melhores do que pobres ensaios morais, totalmente destituídos de qualquer coisa capaz de despertar, converter ou salvar almas. Ambas as partes pareciam, por fim, concordar em um ponto: deixar o diabo em paz e não fazer nada pelos corações e almas. E no que concerne às importantes verdades pelas quais Hooper e Latimer tinham ido para a fogueira, Baxter e muito dos puritanos para a prisão, elas pareciam ter sido totalmente esquecidas e colocadas na prateleira.
Visto que este era o estado de coisas nas igrejas e capelas, ninguém ficará surpreso ao saber que o país estava inundado de infidelidade e ceticismo . O príncipe deste mundo fez um excelente uso da oportunidade. Seus agentes estavam ativos e zelosos em promulgar todos os tipos de idéias estranhas e blasfemas. Collins e Tindal denunciavam o Cristianismo como política clerical. Whiston afirmava serem os milagres da Bíblia grandes embustes. Woolston declarava que eles eram alegorias. Arianismo e Socinianismo eram abertamente ensinados por Clark e Priestly e se tornaram moda entre a classe intelectual da comunidade. Um simples fato pode nos dar uma idéia da completa incapacidade do púlpito em vencer o progresso de toda essa enchente de impiedade. O célebre advogado Blackstone teve a curiosidade, no princípio do reinado de George III, de ir de igreja em igreja para ouvir cada sacerdote importante em Londres. Ele disse que não ouviu um único discurso que apresentasse mais Cristianismo do que os escritos de Cícero, e que lhe seria impossível descobrir, do que ouvira, se o pregador era um seguidor de Confúcio, de Maomé ou de Cristo!
Evidências desta situação são, infelizmente, abundantes. A minha dificuldade não está tanto em descobrir testemunhas, quanto em selecioná-las. Este foi o período ao qual o Arcebispo Secker se referiu em um dos seus comentários: ‘Nisto não podemos estar enganados, que um aberto e professo desprezo da religião tomou-se, através de uma variedade de tristes razões, o caráter distintivo da época. Tal era a devassidão e o desdém de princípios nas camadas mais elevadas, e tal o desregramento, intemperança e a audácia em cometer crimes nas mais baixas, que se a torrente de impiedade não viesse a parar, tornar-se-ia absolutamente fatal. O Cristianismo é ridicularizado e injuriado com pouquíssima reserva, e os que o ensinam, sem reserva alguma'. Este foi o período quando o Bispo Butler, em seu prefácio à ‘Analogia', usou as seguintes palavras dignas de nota:‘Tem-se assumido como fato consumado que o Cristianismo não é mais um assunto para inquirição, e que agora, finalmente, descobriu-se que se trata de mera ficção. Como conseqüência, tem sido tratado presentemente como sendo um ponto de concordância entre todas as pessoas de discernimento, nada restando senão instituí-lo como um dos assuntos preferidos para gracejo e ridículo'. E queixas como estas não se confinavam aos clérigos. O Dr. Watts declara que nos seus dias, ‘havia uma decadência generalizada de religião vital nos corações e vidas das pessoas, e que esta era, em geral, uma constatação observada com pesar entre todos os que consideram seriamente no seu coração a causa de Deus'. O Dr. Guyse, outro não-conformista muito respeitado, diz: ‘ A religião natural insinua-se como o tópico predileto de nossa época; e a religião de Jesus só tem valor por causa daquela, e somente na medida em que leve adiante a luz da natureza e seja um mero aperfeiçoamento deste tipo de luz. Tudo o que é distintivamente cristão, ou que é peculiar a Cristo, tudo o que diz respeito a Ele e que aparentemente não tenha sua fundação na luz natural, ou que vá além dos princípios da natureza, é colocado de lado, banido e desprezado'. Testemunhos como este podem ser facilmente multiplicados dez vezes. Mas eu poupo o leitor. Provavelmente o suficiente já foi apresentado para provar que quando eu falo da condição moral e religiosa da Inglaterra no início do século dezoito como dolorosamente insatisfatória, não estou fazendo uso de uma linguagem exagerada.
Quem eram os bispos daqueles dias? Alguns deles eram, sem dúvida, homens de intelectos e culturas poderosas e de vidas irrepreensíveis. Mas os melhores deles, tais como Secker, Butler, Gibson, Lowth e Horn, pareciam incapazes de fazer mais do que deplorar a existência de males, os quais viam, mas não sabiam como solucionar. Outros, como Lavington e Warburton, fulminavam ferozes acusações contra entusiasmos e fanatismos, e pareciam temer que a Inglaterra viesse a tomar-se demasiadamente religiosa! Mas a maioria dos bispos, para dizer a verdade, eram homens do mundo. Eles estavam desqualificados para a posição em que se encontravam. O caráter predominante do corpo episcopal pode ser avaliado pelo fato de que o arcebispo Cornwallis dava bailes e festas no palácio de Lambeth, até que o próprio rei teve que interferir escrevendo e, pedindo que abandonasse tais práticas. Deixe-me também acrescentar, que quando os ocupantes do colégio episcopal estavam incomodados pela rápida propagação da influência de Whitefield, foi sugerido com seriedade, nas esferas mais altas da igreja, que a melhor maneira de dar um fim a sua influência, era torná-lo bispo.
O que era o clero paroquial daqueles dias? A vasta maioria deles estava imersa no mundanismo, e não sabia nem se importava com coisa alguma da sua profissão. Não faziam o bem, nem gostavam que ninguém o fizesse no lugar deles. Eles caçavam, atiravam, eram proprietários de terras, praguejavam, bebiam e jogavam. Eles pareciam determinados a conhecer tudo, exceto Jesus Cristo e Ele crucificado. Quando eles se reuniam, geralmente era para brindar ‘à igreja e ao rei' e para edificarem-se mutuamente na carnalidade de suas mentes, preconceitos, ignorância e formalismo. Quando retornavam para suas próprias casas, era para fazerem o mínimo e pregarem o mais raramente possível. E quando pregavam, seus sermões eram tão indizível e indescritivelmente ruins, que é reconfortante lembrar que eram geralmente pregados a bancos vazios.
Que tipo de literatura teológica nos foi legada há cem anos atrás? A mais pobre e fraca na língua inglesa. Esta foi a época a que pertencem obras religiosas como a intitulada ‘O Dever Total do Homem', e os sermões de Tillotson e Blair. Pergunte em qualquer loja de livros antigos e você descobrirá que não há teologia tão invendável como os sermões publicados na metade e no final do século passado.
Que tipo de educação possuíam as ordens mais baixas cem anos atrás? Na maior parte das paróquias e especialmente nos distritos rurais, eles não tinham educação alguma. Quase todas as nossas escolas rurais foram construídas a partir de 1800. A ignorância era tão extrema, que um pregador metodista em Somersetshire foi levado a juramento diante dos magistrados porque havia citado em um sermão que, ‘Aquele que não crê será condenado!' Enquanto que Yorkshire não fica atrás de Somersetshire, pois nesta cidade, um oficial de polícia levou Charles Wesley diante dos magistrados, acusando-o de ser um simpatizante do pretendente ao trono da Inglaterra, porque em uma oração pública ele havia pedido ao Senhor que ‘trouxesse de volta os seus exilados!' Para completar, o vice chanceler de Oxford realmente expulsou seis estudantes da universidade porque‘eles tinham tendências metodistas, e resolveram orar e expor as Escrituras em residências particulares'. Dizer palavrões extemporâneos, alguém observou, não criava nenhum problema aos estudantes de Oxford, mas orar extemporaneamente era uma ofensa que não podia ser tolerada!
Como era a moral de cem anos atrás? Basta dizer que a prática de duelo, adultério, fornicação, jogo, linguagem obscena, profanação do domingo e bebedice, dificilmente era considerada como conduta condenável. Estas eram as práticas da moda nas camadas elevadas da sociedade, e ninguém seria mal visto por dar-se a elas. A melhor evidência disto pode ser encontrada nas pinturas de Hogarth.
Qual era a literatura popular de cem anos atrás? Eu deixo de lado o fato de que Bolingbroke, Gibbon e Home, o historiador, estavam todos profundamente mortos no ceticismo. Eu me refiro mesmo é à literatura frívola que estava muito em voga. Folheie as páginas de Fielding, Smollett, Swift e Sterne, e você obterá a resposta. A habilidade desses escritores é inegável; mas a indecência de muitos dos seus escritos é tão berrante e vulgar, que poucas pessoas hoje em dia gostariam de permitir que as obras deles fossem vistas sobre a mesa de suas salas de visitas.
Eu temo que o retrato que venho esboçando seja ainda muito escuro e pálido. Eu desejaria poder lançar um pouco mais de luz sobre ele. Mas fatos são inflexíveis, especialmente fatos sobre literatura. A melhor literatura de cem anos atrás é encontrada nos escritos morais de Addison, Johnson, e Ateele. Mas eu temo que os efeitos dessa literatura no público em geral eram infinitamente pequenos. Na verdade eu creio que Johnson e os ensaístas não tiveram maior influência sobre a religião e moralidade das massas do que a ‘vassoura' da renomada Sra. Partington teve sobre as ondas do oceano Atlântico.
Para resumir tudo e concluir esta parte do meu assunto, eu peço que o leitor se lembre de que as boas obras com as quais todos agora estão familiarizados não existiam há cem anos atrás. Wilberforce ainda não havia atacado o comércio de escravos. Howard ainda não havia reformado as prisões. Raikes ainda não havia estabelecido as escolas dominicais. Nós não tínhamos sociedades bíblicas, escolas para crianças pobres, missões urbanas, sociedades de ajuda pastoral, missões a povos pagãos. O espírito da sonolência estava sobre a nossa terra. Do ponto de vista moral e religioso, a Inglaterra dormia profundamente.
Eu não posso deixar de observar, ao concluir este capítulo, que nós deveríamos ser mais gratos pelos tempos em que vivemos. Eu temo que sejamos mais tendentes a olhar para os males que vemos ao nosso redor, e a esquecermos quão piores eram as coisas há cem anos atrás. De minha parte, não alimento ilusões quanto aos ‘bons tempos antigos' dos quais alguns falam com deleite e admito isso francamente. Eu os considero como uma mera fábula e mito. Acredito que o tempo em que estamos vivendo é um dos melhores que a Inglaterra já viu. Não digo isso com jactância. Sei que temos muitas coisas para deplorar. O que eu realmente digo é que as coisas poderiam ser piores. A nossa situação era muito pior há cem anos atrás. O nível geral da religião e da moral é indubitavelmente muito mais elevado hoje. Pelo menos, em 1868, nós estamos despertados. Nós vemos e sentimos os males, os quais as pessoas não sentiam há cem anos atrás. Nós lutamos para nos ver livres desses males; nós desejamos nos corrigir. Apesar de nossas muitas faltas, não estamos profundamente adormecidos. Em todos os lados há ânimo, ação, movimento, progresso e não estagnação. Por piores que estejamos, confessamos o nosso mal estado. Por mais fracos que estejamos, reconhecemos nossa fraqueza. Por mais insignificantes que sejam nossos esforços, estamos empenhados em melhorar. Embora estejamos fazendo pouco por Cristo, estamos tentando fazer alguma coisa. Agradeçamos a Deus por isso! As coisas poderiam estar piores. Comparando os nossos próprios dias com os meados do século passado, há razão para agradecermos a Deus e para criar coragem. A Inglaterra está em um estado melhor do que se encontrava há cem anos atrás.

*Traduzido por Paulo R. B. Anglada, a partir de J. C. Ryle, Christian Leaders of 18th. Century (reprint, Edinburgh and Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, 1978), 149-79. Revisado por Cláudio Vilhena e Emir Bemerguy Filho.


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